Prevenção sem limites
Linhaça e água de berinjela para emagrecer. Ioga para relaxar. Malhação para tonificar os músculos. Pilates para alongar. Suplementos para dar energia e complementar a alimentação. Por fim, checapes regulares para ter certeza de que está tudo no lugar. A lista longa de cuidados garante beleza e longevidade, pregam celebridades do mundo fitness. Mas especialistas alertam que a precaução com a saúde e o excesso de cuidados têm limite. Se ultrapassado, chega a uma condição que tem sido chamada por eles de healthism.
Em linhas gerais, o healthism funciona como um criador de regras que identifica e impõe o modo correto de viver. A preocupação excessiva com a condição física pode levar a exageros. Em artigo publicado recentemente no Journal of Social Policy Studies, Evgenia Golman, professora da Faculdade de Ciências Sociais do Departamento de Sociologia Geral, na Rússia, usa como exemplo para explicar o fenômeno a realização de cirurgias em pacientes saudáveis pela simples possibilidade de uma doença sugerida em um exame.
Atitudes drásticas como essa também são chamadas pelos especialistas de síndrome de Angelina Jolie, uma referência à atriz hollywoodiana que retirou as mamas e o ovário ao descobrir que tinha o risco aumentado de ter câncer. Após o anúncio da mastectomia preventiva feito por ela, em maio de 2013, a procura pelo teste que analisa as mutações detectadas em Jolie mais que dobrou no Reino Unido, segundo pesquisa divulgada, em setembro de 2014, no Breast Cancer Research e que levou em consideração dados de 21 centros de saúde. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) estimou, também em 2014, que o interesse pela cirurgia para prevenir a doença havia aumentado 50%.
O caso da hollywoodiana, porém, é uma manifestação extrema deste novo olhar sobre a saúde. Golman ressalta que o healthism inclui principalmente comportamentos que impactam no dia a dia, como o aumento das dietas, das cirurgias plásticas e do consumo de alimentos orgânicos, bem como a popularidade de aplicativos móveis para a vigilância da saúde. No mesmo artigo, a especialista ressalta que, apesar de a medicina preventiva ajudar a salvar muitas vidas e poupar recursos governamentais, a prevenção excessiva na busca de um ideal saudável pode levar a uma neurose na população e afetar todas as relações sociais.
“O indivíduo tem que estar em conformidade com os padrões contemporâneos de um estilo de vida saudável e de aparência. Caso não esteja, corre o risco de ser avaliado negativamente em termos de suas qualidades pessoais e profissionais”, explica Golman. Com medo de serem mal avaliadas pela sociedade, as pessoas ficam obsessivas por um ideal e começam a detectar sinais de doenças imaginárias, complementa a pesquisadora.
Impulso tecnológico
A grande produção e o barateamento de novas tecnologias médicas também contribuem para o healthism. Facilidades para diagnosticar possíveis descompassos no corpo levam ao aparecimento de “pacientes sem sintomas”, que, segundo Golman, acabam vivendo em um regime de vigilância da saúde pelo resto da vida. Como consequência, a prevenção ganha um tratamento exagerado, refletido no aumento do consumo de produtos de monitoramento, como pulseiras e aplicativos que controlam o nível de atividade física e da qualidade do sono.
Greice Cerqueira Nunes, psicóloga clínica e professora do curso de psicologia do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb), observa que, com a prevenção em um padrão extremamente alto e tecnológico, há um aumento nos níveis de ansiedade relacionada aos padrões imperativos proporcionados pela “falsa saúde”. “Falsa porque alimenta e enriquece a indústria farmacêutica com marketing muitas vezes tendencioso. Porque nutre a necessidade de status de bem-estar. Porque gera uma obsessão retroalimentada por si mesmo para gerar e manter a máquina que faz você acreditar que precisa de um sabonete antibacteriano ou que precisa tomar suplementos lácteos com lactobacilos vivos”, critica.
O modelo tradicional de família faz com que as mulheres sejam ainda mais impactadas por essas pressões, observa Tatiana Lionço, psicóloga conselheira do Conselho de Regional de Psicologia do Distrito Federal. Isso porque, além do próprio corpo, elas precisam assumir os cuidados com o bem-estar da família. “Existe uma maior oferta de exames biomédicos em relação às mulheres também por um histórico de objetificação do corpo da mulher. É evidente que a pressão, do ponto de vista estético, é maior sobre elas”, complementa.
Palavra de especialista
Pressão da
indústria
“A indústria médica e de alimentos acaba ‘criando’ doenças para, depois, lançar produtos. Acontece, por exemplo, de um laboratório estar fazendo um remédio para hipertensão e descobrir que a substância é melhor para a queda de cabelo. Aí, eles lançam o remédio como a solução milagrosa da calvície. Assim, surge o produto e, depois, se pensa em um mercado para ele. Desse modo, o remédio não surge da necessidade do paciente, mas da necessidade da indústria de vender. E essa indústria encontra eco na sociedade baseada em consumo. Assim, a saúde é também um bem de consumo. Em muitos casos, esses produtos não conseguem alcançar de forma satisfatória seus objetivos, as pessoas se frustram e essa decepção leva à busca eterna por soluções, pois nunca o indivíduo fica satisfeito com o resultado.”
Rodrigo Lima,
diretor de comunicação da Sociedade
Brasileira de Medicina de Família e
Comunidade (SBMFC)
Detalhado o risco familiar do câncer
Embora especialistas dividam-se quanto ao procedimento preventivo realizado pela atriz Angelina Jolie, que retirou as mamas, as trompas e o ovário devido ao histórico familiar da doença e a marcadores genéticos específicos, é fato científico que o câncer tem um forte componente hereditário. Na edição de ontem do Jornal da Associação Médica Americana (Jama), pesquisadores americanos, dinamarqueses e finlandeses publicaram um estudo realizado com mais de 200 mil gêmeos ao longo de 32 anos no qual investigaram o risco aumentado de um indivíduo quando um parente próximo já teve câncer. Dos 23 tipos de tumores estudados — dos mais comuns aos mais raros —, praticamente todos apresentam um forte risco familiar.
O estudo, conduzido pela Faculdade de Saúde Pública T.H. Chan de Harvard, pela Universidade do Sul da Dinamarca e pela Universidade de Helsinki, é o primeiro a fornecer estimativas de risco familiar para tumores como próstata, testículo, cabeça e pescoço, melanoma, ovário e estômago, entre outros. A pesquisa também traz uma informação inédita: em pares de gêmeos em que ambos tiveram câncer, no geral, os tumores são de tipos diferentes. Isso sugere que, em algumas famílias, há um risco aumentado de se desenvolver qualquer doença oncológica.
“Pesquisas anteriores forneceram estimativas de risco familiar e hereditariedade para cânceres comuns — mama, próstata e cólon —, mas, para os mais raros, os estudos ou eram pequenos ou o período de acompanhamento muito curto para serem capazes de apontar tanto hereditariedade quanto risco familiar”, diz Lorelei Mucci, professora de epidemiologia de Harvard e coautora do estudo. Risco familiar de câncer mede a chance de surgimento da doença em um indivíduo. A hereditariedade indica o quanto do risco de uma população está associado a fatores genéticos. “As descobertas de nosso trabalho podem ser úteis para programas educativos e de aconselhamento”, afirma Jaakko Kaprio, coautor do estudo e pesquisador da Universidade de Helsinki.
Até 58%
Os pesquisadores investigaram dados de mais de 200 gêmeos idênticos e fraternos na Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia, que participaram do Estudo Nórdico de Gêmeos sobre Câncer, tendo sido acompanhados por 32 anos, entre 1943 e 2010. No geral, uma em cada três pessoas da amostra desenvolveu a doença ao longo da vida. O carcinoma foi diagnosticado em ambos os gêmeos em 3.316 pares. Neles, o mesmo tipo oncológico foi detectado entre 38% dos idênticos e em 26% dos fraternos.
Os cientistas estimam que, quando um gêmeo fraterno é diagnosticado com qualquer tipo de câncer, o risco do irmão de sofrer da doença é de 37%. Entre gêmeos idênticos, passa para 46%. Um dos mais fortes riscos familiares observados foi para o tumor de testículo. A chance de um homem desenvolver a doença é 12 vezes maior que o restante da população se o gêmeo fraterno dele tiver o câncer, e 28 vezes mais alta se o gêmeo idêntico for diagnosticado com o problema.
Dado o fato de que gêmeos fraternos são geneticamente similares a irmãos que não são gêmeos, a descoberta a respeito do risco excessivo de câncer entre eles pode fornecer informações sobre chances aumentadas para a doença em famílias em que um dos irmãos tem um tumor maligno. Os pesquisadores também constataram que a hereditariedade do câncer em geral é de 33%. A influência hereditária foi significativa para melanoma (58%), próstata (57%), pele não melanoma (43%), ovário (39%), rim (38%), mama (31%) e útero (27%).
“Devido ao tamanho do estudo e ao longo tempo de acompanhamento, podemos ver agora efeitos genéticos-chaves para muitos cânceres”, diz Jacob Hjelmorg, da Universidade do Sul da Dinamarca e coautor da pesquisa. “O estudo será uma fonte futura para solucionar outras questões complexas a respeito do câncer”, complementa Hans-Olov Adami, professor de epidemiologia de Harvard que também participou das investigações.